Base de Aratu: um oásis sitiado
A
base naval de Aratu, na zona metropolitana de Salvador, é um recanto
para algumas personalidades da República. Em dezembro de 2011, Dilma
Rousseff escolheu como destino a Praia de Inema para tirar alguns dias
de folga. A base é também um dos locais preferidos de Luiz Inácio Lula
da Silva: durante dois anos consecutivos o ex-presidente passou o
reveillon no local, cujo acesso é restrito à Marinha do Brasil.
São aproximadamente 500
pessoas. Há relatos de gerações de famílias que estão na área há mais de
100 anos e hoje estão assediados pela opressão dos oficiais. “A gente
vive sendo ameaçado de morte. É uma verdadeira guerra contra nossas
crianças e idosos”, conta Rosemeire Santos, 33 anos, uma das líderes da
comunidade.Descrevendo dessa maneira pode até parecer que Aratu é um
oásis. Mas os oficiais que garantem a segurança dos chefes da República
durante suas férias são os mesmos que há cerca de 40 anos tiram o
sossego dos moradores da região do Rio dos Macacos, terreno localizado
dentro da base e já reconhecido como quilombola pelo Instituto Nacional
de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
Ela nasceu e cresceu no
quilombo e explica que a Marinha reveza momentos de extrema violência
com outros de relativa paz. “Hoje em dia minha filha pequena tem medo
dos camburões. Minha avó está doente, em cima de uma cama, e nem isso
eles respeitam. Colocam armas nos nossos rostos. Chegam à nossa casa no
meio da noite, não podemos nem dormir”, lamenta.
Histórico
O embate entre os
oficiais e os moradores do quilombo começou em 1954, quando a prefeitura
de Salvador doou o terreno para a Marinha, que logo construiu uma
barragem. Nos anos 1970 foi levantada uma vila naval para ser a
residência dos fuzileiros. “Essa vila foi feita em cima de terreiros de
candomblé. Desde então os relatos são de que 50, 60 famílias foram
expulsas sem direito à indenização. Essa comunidade que restou fica do
outro lado do Rio dos Macacos e são os remanescentes dessa primeira
investida”, afirma Maurício Correia, da Associação de Advogados de
Trabalhadores Rurais da Bahia. Junto com a Defensoria Pública da União
no estado, a entidade presta assessoria jurídica aos moradores da
comunidade.
Em 2010, a Marinha
entrou com uma ação na Justiça Federal, por meio da Advocacia-Geral da
União, pedindo uma liminar de reintegração de posse, concedida pelo juiz
Evandro Reimão dos Reis, da 10ª Vara Federal de Salvador. Desde então
os moradores começaram a se mobilizar. Em setembro do mesmo ano a
Fundação Palmares certificou o território como quilombo, o que fez com
que o despejo passasse a ser postergado. “A reintegração de posse já foi
adiada duas vezes: a primeira foi uma tentativa de negociação, estavam
propondo um relocamento dessa comunidade, algo que eles não pretendem
aceitar”, diz Correia.
A reintegração de posse
ocorreria em 4 de março deste ano, mas foi adiada para 1º de agosto.
“Foi articulado um novo acordo para a suspensão do cumprimento dessa
decisão durante o tempo necessário para o Incra elaborar o Relatório de
Identificação e Demarcação da Comunidade”, explica.
Mais agressões
Enquanto
o Incra trabalha na elaboração do relatório, os quilombolas fazem o que
podem para a preservação de seu terreno. No dia 13 de maio estiveram em
Brasília para pedir ajuda. “Foi um ônibus com toda a comunidade.
Tivemos uma reunião com a Secretaria Geral da Presidência, com o
Ministério da Defesa e com a Procuradoria Geral da República, mas o
governo insiste que só tomará novas providências com a conclusão do
documento do Incra”, relata Correia.
Rosemeire conta que nem
durante a viagem os moradores ficaram livres de truculência. “Do dia 13
até o dia 17, quando a gente voltou para a comunidade, eles seguiram a
gente. Lá em Brasília um tenente estava andando em um carro da Polícia
Militar. Outro rapaz em um carro branco atirou na minha irmã, mas ela
conseguiu desviar. Enquanto isso, nossas crianças que permaneceram no
quilombo estavam cercadas pelos oficiais que ficaram na base”.
Mesmo recorrendo ao
governo, a violência não cessou. Em 28 de maio, uma segunda-feira, seis
camburões da Marinha invadiram o local. Isso porque o morador José
Araújo dos Santos estava reconstruindo uma parede de sua casa, destruída
pelas fortes chuvas que atingiram Salvador no fim de semana anterior.
“Nós fomos chamados por eles e fomos barrados na portaria da vila
militar, mesmo tendo procuração do processo. Tivemos que dar a volta por
um caminho alternativo, fomos interpelados, recebemos voz de prisão de
um soldado. Chegamos lá e encontramos a comunidade sitiada, a casa
rodeada com fuzileiros com escudo, com tropas de choque mesmo e um
acampamento militar, cheio de crianças, de idosos, um pessoal desarmado.
Os almirantes estavam enfrentando a comunidade com fuzil, algo que não
se usa em nenhum tipo de gestão de crise com sociedade civil”, conta o
advogado.
E complementa: “Nós
ficamos lá até 9 horas da noite e só saímos quando houve um acordo com o
comando da Marinha, mediado pela Secretaria de Promoção da Igualdade da
Bahia. Ficou combinada a retirada imediata das tropas e marcado que no
prazo de 48 horas fosse verificada essa questão da possibilidade de
reconstruir as moradias, mas até agora a gente não tem resposta sobre
isso”.
“Mais do que a questão
da permanência no terreno, o que mais nos preocupa é a constante
opressão. Não é somente violência física, mas também psicológica. Quando
nós estamos lá garantimos que não haverá violência, mas e quando
saímos?”, questiona Correia.Apesar do acordo, a líder da comunidade diz
que a Marinha não saiu do local. “Eles não cumpriram. Saíram dois
camburões, o restante ficou no fundo do quilombo. Os oficiais que não
saíram rodearam a casa do meu irmão à uma hora da manhã com armas e
ficaram lá”, narra.
Assembleia pública
Diante
da situação, membros do Conselho de Direitos Humanos da Câmara dos
Deputados visitaram o Quilombo do Rio dos Macacos na última
segunda-feira 4. A comissão, presidida pelo deputado Domingos Dutra
(PT-MA), tinha como objetivo verificar a veracidade das denúncias contra
a Marinha e ter uma dimensão do tamanho do terreno. Além dele,
estiveram também presentes os deputados baianos Amauri Teixeira, Luiz
Alberto e Valmir Assunção.
Dutra diz ter comprovado
as violações no local. “O que nós verificamos aqui é uma situação
talvez única no País. O nível de miséria é alarmante, é uma miséria
absoluta, incompatível com um País que se intitula a sexta economia do
mundo. As pessoas aqui não têm uma residência, mas umas choupanas.
Pessoas idosas estão morando em chiqueiros e ainda por cima estão
proibidos de fazer qualquer melhoria nessas casas”, relata o deputado.
Os quilombolas também
não têm acesso à energia elétrica, tampouco podem plantar no território
ou pescar no Rio dos Macacos. A Marinha realiza três patrulhas por dia,
sempre ostensivamente armada, mas nega a opressão. Em nota oficial,
afirma estar no direito de proibir a construção das casas, uma vez que
ganhou o processo de reintegração de posse na 10ª Vara Federal. “Eles
negam as acusações. Estivemos com o Vice-Almirante Monteiro Dias e ele
disse que não há agressões e que, muito pelo contrário, são os
fuzileiros os verdadeiros injustiçados”, conta o deputado.
A Marinha também nega
que o território seja um quilombo, dizendo que os moradores estão há
menos de 40 anos na área. Também afirmam que o território é fundamental
para a permanência da Base de Aratu e que apenas estão defendendo o
patrimônio da União. “Nós recebemos cartas de crianças que estão com
medo dos fuzileiros navais. Diante dessas denúncias, dos relatos de
jovens, idosos, homens e mulheres e considerando a negativa do almirante
da Marinha, nós vamos fazer audiência na Comissão dos Direitos Humanos e
vamos levar todo mundo para relatar isso para quem quiser ouvir. Vamos
conversar com a Advocacia-Geral da União porque eu considero um absurdo
que a entidade antes de esgotar todos os diálogos tenha ingressado uma
ação judicial para despejar uma comunidade que afirma que tem mais de
100 anos”, garante.
Para Dutra, é possível
compatibilizar a vida da base naval com a do quilombo e considera que
realocar os moradores não deve ser uma opção. “Esse caso é simbólico. Se
essa moda pega e o governo federal ficar realocando quilombola, como
Marambaia no Rio de Janeiro e Alcântara no Maranhão, vai acabar com os
quilombos do Brasil”, acredita.
FONTE: CARTA CAPITAL
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