RACISMO E SAÚDE
Por Thamyra Thamara e Thiago Ansel
Na teledramaturgia e no jornalismo, o racismo tem sido insistentemente tratado a partir de episódios de discriminação — que podem ser agressões ou situações de constrangimento em que o preconceito é, em geral, explícito. Na ficção televisiva não faltam exemplos de estórias de famílias brancas que torcem o nariz quando um de seus membros se envolve com um negro ou negra; ou de vilões que disparam todo o tipo de ofensas, inclusive as raciais. No jornalismo, o racismo costuma virar pauta quando se trata de flagrante ou denúncia de injúria racial ou quando todas as alternativas de explicação para uma injustiça pontual se esgotam.
Em todos esses casos, o racismo é abordado como um fenômeno que interrompe e violenta o fluxo normal da vida. Seria mesmo o racismo uma exceção? Ao pensar nessa questão, um paradoxo chama a atenção: quando nos jornais a desigualdade racial é enunciada em áreas como educação, trabalho, saúde, acesso à justiça e outras, pouco se nota o estabelecimento de conexões entre os piores desempenhos da população negra e o racismo.
Mas por que as agressões raciais são tratadas como discriminação e as desigualdades estatísticas em campos como saúde e educação não? O racismo é mesmo uma “quebra da normalidade”? A saúde pública no Brasil, pelo tipo de atendimento dispensado aos negros, mostra que não. A precariedade do serviço destinado a estes é a norma e os índices só comprovam. E se a violência é a norma, suas consequências são tão perversas quanto invisíveis e silenciosas.
Thiago Daniel de Almeida, 18, está há três anos em uma cama sem se locomover desde que foi atingido por uma bala perdida no Morro do Chapadão, em Costa Barros. Sua tia, Tânia Cristina Daniel — que hoje cuida do jovem e sustenta mais 12 pessoas com uma renda mensal de dois salários mínimos — conta que Thiago demorou uma dia para ser atendido, simplesmente porque os médicos acharam que ele era um criminoso. “Estavam esperando ele morrer, achavam que era bandido”, conta Tânia, que afirma que seu sobrinho poderia ter voltado a andar já que um dos ortopedistas disse que a perna dele ainda respondia a estímulos.
“Quando eu vi o que o Thiago estava passando no hospital fiz um escândalo, eles mataram a minha filha e eu não ia deixar matarem o meu sobrinho também”, relembra a triste história de sua filha Alessandra que foi internada no hospital Carlos Chagas e veio a falecer depois de ter recebido uma medicação errada. Tânia conta que a mãe de Thiago morreu 20 dias depois de ele ter sido baleado, por não aguentar a dor de ver seu filho paraplégico.
Segundo o último Relatório Anual das Desigualdades Raciais (2009 – 2010), no Brasil, 67% dos negros que haviam passado por estabelecimento de saúde nas duas últimas semanas o fizeram através do SUS. Nas internações, este percentual chegava a 79%. Ainda de acordo com o relatório, para cada 100 pessoas negras que procuraram serviços de saúde, 29 não foram atendidas mesmo expressando necessidade. Entre os brancos, este percentual foi menos da metade (14).
Sônia Fleury, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), que coordenou uma pesquisa sobre atendimento no SUS, observa que o serviço ruim não é acidente. “Há muita conformidade com a ideia de que as dificuldades estruturais estão dadas. A precariedade é encarada como algo que justifica as mazelas nos hospitais e não como uma forma de violência institucional contra a população negra e pobre. Uma fala que se repete é: ‘Serviço público é assim mesmo’. Não tem de ser. Tem de ser de excelência. A precariedade é uma opção política”, pondera.
A pesquisa conclui ainda que o grande poder de descrever e selecionar os pacientes transforma relações de direito em relações pessoais. Nestas, os critérios para a prioridade no atendimento tendem a ser menos formais abrindo maior espaço para a discriminação. “No atendimento, as formas de discriminação como o racismo representam um segundo sofrimento”, conclui a pesquisadora.
Contudo, em nenhuma dessas situações o racismo é verbalizado, o que aprofunda a sensação de impotência. As vítimas se veem sem recursos para se defenderem de uma discriminação não nomeada. Segundo Jurema Werneck, coordenadora da organização de mulheres negras Criola, médica, e integrante do Comitê Técnico de Saúde da População Negra, o racismo tem no silêncio uma arma. “Não falar sobre o racismo é uma de suas estratégias mais eficientes, uma vez que permite a continuidade do silenciamento e da inércia diante das disparidades raciais. Demonstrar que o verdadeiro significado deste velamento e a naturalização da iniquidade é um passo importante para enfrentar a discriminação e a violência”, diz.
Pesquisas na área da saúde e em outras tem mostrado que o não posicionamento e a não discussão sobre o racismo por qualquer instituição acabam oficializando as práticas discriminatórias e consolidando o chamado racismo institucional. Este é definido como o fracasso de uma organização em fornecer um serviço apropriado para as pessoas por causa de sua cor, cultura ou origem étnica.
De acordo com Jurema Werneck, correlacionar os dados da desigualdade com o racismo é um passo importante, mas não o único. “É preciso que busquemos produzir evidências das disparidades de poder provocadas pelo racismo e seus impactos na saúde; evidências sobre o racismo institucional no SUS. Além de propor formas de gestão pública capazes de contribuir para a alteração deste quadro”.
Enfrentar as desigualdades é uma das bandeiras do SUS, traduzida no chamado princípio da equidade, ou seja, oferecer tratamentos diferenciados aos mais vulneráveis. E no que diz respeito à população negra, as vulnerabilidades tem sido geradas — e muitas vezes aprofundadas — pela reprodução de injustiças históricas em vários campos, todas autorizadas, naturalizadas, isto é, tornadas “normais” pelo silêncio.
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